|
Back to Blog
Foto tirada pela autora desta publicação: Fall von Babylon (1884) - Königliche Museen der Schönen Künste em BruxelasIntrodução
A objetificação do corpo é uma questão profundamente enraizada nas estruturas sociais e culturais que moldam nossa sociedade. Como psicóloga clínica, frequentemente percebo como essa objetificação impacta a saúde mental de muitas pessoas, especialmente na forma de transtornos alimentares. Estes, por sua vez, refletem um distanciamento doloroso entre o ser e o corpo, uma desconexão que muitas vezes é alimentada por padrões estéticos inatingíveis e em constante mudança ao longo da história. Neste artigo, explorarei essas dinâmicas sob a perspectiva da Daseinsanalyse, destacando o conceito de corporeidade de Martin Heidegger e a evolução dos padrões estéticos em diferentes contextos históricos. A Evolução dos Padrões Estéticos Os padrões estéticos, têm variado significativamente ao longo da história, refletindo as condições socioeconômicas, políticas e culturais de cada época. Esses padrões não são estáticos; eles mudam com o tempo, influenciando e sendo influenciados pelas dinâmicas de poder e pelos ideais de beleza predominantes. No período clássico da Grécia Antiga, a beleza era muitas vezes associada à simetria e à proporção, refletindo ideais de equilíbrio e harmonia. O corpo era valorizado tanto por sua função reprodutiva quanto por sua capacidade de representar o ideal de beleza. Durante a Renascença, esses ideais se intensificaram, com o corpo sendo exaltado como uma obra de arte. No entanto, esse culto à forma física era reservado a uma elite, e o corpo era frequentemente objetificado como símbolo de perfeição estética. No século XIX, especialmente durante a Era Vitoriana, o corpo passou por uma transformação simbólica. A sociedade esperava que as pessoas, especialmente as mulheres, adotassem um ideal de fragilidade e delicadeza, refletido na prática do uso de espartilhos para moldar o corpo em uma forma estreita e curvilínea. O ideal de beleza feminino incluía uma cintura pequena e quadris largos, representando tanto a fertilidade quanto a pureza. Esse período reforçou a ideia de que o corpo deveria ser moldado e controlado para se adequar aos padrões de beleza dominantes, muitas vezes à custa da saúde e do bem-estar. Com o advento do século XX, os padrões estéticos continuaram a mudar radicalmente. A década de 1920, por exemplo, viu a ascensão das "flappers", que desafiaram os ideais anteriores com seus corpos esguios e andróginos, simbolizando uma nova liberdade e rejeição das normas vitorianas. No entanto, com o passar das décadas, o ideal de corpo passou a oscilar entre a magreza extrema e o corpo voluptuoso, refletindo as mudanças econômicas e culturais. Nos anos 1980 e 1990, a cultura fitness e a valorização de um corpo atlético e magro tornaram-se dominantes, alimentando uma obsessão com o controle do peso e a aparência física. No século XXI, embora haja uma maior celebração da diversidade corporal e uma crescente conscientização sobre os perigos da objetificação, as pressões para se adequar a certos padrões de beleza continuam fortes. A mídia e as redes sociais desempenham um papel significativo na perpetuação desses padrões, ao mesmo tempo que promovem mensagens contraditórias sobre aceitação e mudança corporal. Muitas pessoas, especialmente os jovens, continuam a enfrentar uma dicotomia entre a aceitação de seus corpos como são e a pressão para moldá-los de acordo com ideais muitas vezes inatingíveis. As mídias sociais reforçam esses padrões e muitas vezes geram comparações estéticas irreais e obsessivas. Corporeidade em Heidegger e a Daseinsanalyse Martin Heidegger, em sua obra “Ser e Tempo”, introduz o conceito de "corporeidade" (Leiblichkeit) como uma dimensão fundamental do ser-no-mundo (Dasein). Para Heidegger, o corpo não é simplesmente uma coisa entre outras coisas, nem um objeto isolado que possuímos, mas uma parte essencial de como existimos e nos relacionamos com o mundo. A corporeidade, então, é a maneira pela qual o Dasein se apresenta no mundo, experienciando e interagindo com ele de forma integral. Na Daseinsanalyse, o corpo é visto como um aspecto fundamental do ser-no-mundo, onde a experiência corporal não pode ser separada da experiência existencial. Em outras palavras, como vivenciamos nosso corpo está profundamente ligado a como nos percebemos e nos situamos no mundo. Quando o corpo é objetificado, como muitas vezes acontece, essa relação autêntica com o corpo é perturbada, levando a uma alienação que pode se manifestar em transtornos alimentares e outros problemas de saúde mental. Na perspectiva heideggeriana, o corpo é uma expressão do ser-no-mundo, uma forma de estar no mundo que não pode ser reduzida a uma mera entidade física. O corpo, para Heidegger, é onde o ser humano encontra e experimenta o mundo; é através do corpo que percebemos, sentimos e interagimos com a realidade ao nosso redor. Assim, a relação que temos com nosso corpo reflete a relação que temos com o mundo e com nós mesmos. Quando o corpo é objetificado, essa relação autêntica é interrompida. Em vez de ser uma expressão do ser, o corpo é transformado em um objeto para ser visto, avaliado e controlado. Isso leva a um distanciamento entre o ser e o corpo, uma desconexão que é muitas vezes experienciada como alienação e que pode resultar em transtornos alimentares. Transtornos Alimentares como Reflexo da Alienação Os transtornos alimentares podem ser vistos como uma manifestação dessa alienação. Quando indivíduos internalizam os padrões sociais de beleza e começam a ver seus corpos como objetos a serem moldados de acordo com esses padrões, ocorre um distanciamento da autenticidade, e o corpo passa a ser experienciado como algo separado do próprio ser. Essa alienação é frequentemente acompanhada por sentimentos de inadequação, vergonha e um desejo intenso de controle, que se manifesta em comportamentos como a restrição alimentar, a purgação ou a compulsão alimentar. Na prática clínica, é essencial abordar essa desconexão entre o ser e o corpo. A Daseinsanalyse oferece uma abordagem para ajudar as pessoas a reconectar-se com seus corpos de forma autêntica, reconhecendo o corpo não como um objeto, mas como uma parte integral de quem elas são. Essa reconexão pode ser um passo crucial na recuperação de transtornos alimentares, permitindo uma relação mais saudável e equilibrada com o corpo e com o mundo. Intervenções Clínicas Baseadas na Daseinsanalyse Na prática clínica, a Daseinsanalyse oferece várias estratégias para ajudar a lidar com a objetificação e os transtornos alimentares. Essas estratégias focam na ressignificação da relação com o corpo e na promoção de uma existência mais autêntica e integrada. Ressignificação do Corpo Uma das principais intervenções na Daseinsanalyse é ajudar a ressignificar a relação com o corpo. Isso envolve um processo de desconstrução dos padrões sociais internalizados e a reconstrução de uma relação mais autêntica e saudável com o corpo. O objetivo é que o corpo seja visto não como um objeto a ser controlado ou moldado, mas como uma parte essencial de quem se é. Esse processo pode envolver exercícios de mindfulness e consciência corporal, onde as pessoas são encorajadas a se reconectar com as sensações físicas e a experimentar o corpo de uma maneira nova, livre das pressões externas. Isso pode ajudar a quebrar o ciclo de autocrítica e controle obsessivo, permitindo que se recupere uma sensação de pertencimento e aceitação. Autoconhecimento e Autenticidade Outro aspecto importante da intervenção é o foco no autoconhecimento e na autenticidade. A Daseinsanalyse incentiva a exploração de quem se é, independentemente dos padrões sociais de beleza e comportamento. Isso envolve uma reflexão profunda sobre os valores e as crenças que sustentam a autoimagem e a construção de uma identidade que seja fiel à sua essência. Na prática clínica, isso pode ser facilitado através de diálogos terapêuticos que desafiam as narrativas internalizadas sobre o corpo e a aparência. As pessoas são encorajadas a questionar os "deverias" impostos pela sociedade e a descobrir o que realmente importa para elas. Esse processo pode ser libertador, permitindo que se liberte das amarras das expectativas externas e viva de acordo com seus próprios valores e desejos. Empoderamento e Autonomia O empoderamento é um componente crucial da Daseinsanalyse. Na terapia, o objetivo é fortalecer a autonomia, ajudando a desenvolver a capacidade de fazer escolhas que reflitam desejos genuínos, em vez de se conformar às expectativas sociais. O empoderamento envolve a construção de uma nova narrativa sobre o corpo e a identidade, onde se torna protagonista da própria vida. Essa abordagem pode incluir o desenvolvimento de habilidades de assertividade, onde se aprende a expressar necessidades e desejos de maneira clara e confiante. Também pode envolver o trabalho com a autoestima, ajudando a reconhecer o valor intrínseco e a se defender contra a objetificação e a crítica externa. Reconexão com o Corpo A Daseinsanalyse enfatiza a importância da reconexão com o corpo. Isso significa redescobrir o corpo como uma fonte de prazer e bem-estar, em vez de um objeto de controle ou punição. A terapia pode incluir práticas que promovam uma experiência positiva do corpo, como atividades físicas prazerosas, técnicas de relaxamento e exercícios de atenção plena que enfoquem a aceitação corporal. A reconexão com o corpo também envolve a exploração dos sentimentos e emoções que foram reprimidos ou negados. Muitas vezes, os transtornos alimentares estão ligados a uma desconexão emocional, onde o controle alimentar é usado como uma forma de lidar com emoções difíceis. Na terapia, é importante ajudar a identificar e expressar essas emoções de maneiras mais saudáveis, permitindo uma maior integração entre corpo e mente. Considerações Finais A objetificação do corpo e os transtornos alimentares são questões profundamente interligadas que refletem uma desconexão entre o ser e o corpo. Na perspectiva da Daseinsanalyse, essa desconexão é vista como uma forma de alienação, onde o corpo é transformado de uma expressão autêntica do ser em um objeto de controle e avaliação. Para superar essa alienação, a prática clínica deve focar na ressignificação da relação com o corpo, promovendo o autoconhecimento, a autenticidade e o empoderamento. Ao reconectar-se com o corpo de forma mais saudável e integrada, é possível recuperar a relação com o mundo e consigo mesmo, promovendo uma existência mais plena e autêntica. Se você se identifica com essas questões, saiba que existe ajuda disponível. A terapia pode ser um espaço seguro para explorar e transformar sua relação com o corpo, permitindo que viva de maneira mais livre e autêntica, livre das imposições e expectativas externas. O caminho para a recuperação é desafiador, mas com o apoio certo, é possível alcançar uma vida de maior bem-estar e satisfação. Comments are closed.
|